Influências do Cognitivismo nos Estudos da Linguagem: Aspectos sobre a Linguística Cognitiva
Este conteúdo foi produzido como parte da avaliação da Unidade Curricular Linguagem e Cognição do curso de Graduação em Letras da Unifesp, ministrado em 2017.2 pela Profa. Indaiá Bassani.
A linguagem é sem dúvida uma das principais capacidades humanas e uma importante característica distintiva desta espécie frente às demais. Embora diversos animais sejam capazes de desenvolver processos comunicativos, o nível de complexidade da linguagem humana é bastante particular e restrito à espécie em questão. Nós seres humanos não utilizamos a linguagem somente para nos comunicarmos, mas também e principalmente para processar e “decodificar” o mundo à nossa volta. Graças a ela construímos e registramos conhecimentos, produzimos arte e expressamos nossas intenções e necessidades mais intrínsecas.
A importância da linguagem fomentou, ao longo dos anos, o surgimento de diversos estudos sobre sua origem e desenvolvimento. Tais estudos foram bastante entusiasmados pelos paradigmas correspondentes à época vigente, de modo que, teorias linguísticas mais atuais são consideravelmente influenciadas pelo cognitivismo emergente em meados do século XX. Nesse contexto, a mente humana é realçada pelo exercício da cognição definida como “o tratamento da informação: a manipulação de símbolos a partir de regras” (VARELA, 1994, p.34), ou ainda como o processo pelo qual nos apropriamos do conhecimento. No campo linguístico, uma das principais inquietações apontadas pelos cognitivistas seria àquela relacionada ao funcionamento do cérebro humano no que diz respeito à linguagem: seria esta uma habilidade independente das demais? Em quais aspectos as correntes cognitivistas influenciaram os estudos da linguagem?
O gerativismo de Noam Chomsky, surgido na década de 50 em contraposição às ideias behavioristas, já trazia aos estudos linguísticos enfoque cognitivista¹, pautado nas capacidades da mente humana (nas habilidades inerentes a ela), “[...] existe uma faculdade, uma componente da mente/cérebro que dá origem ao conhecimento da língua, dada experiência vivida.” (CHOMSKY, 1994, p.24). Contudo, os gerativistas enxergavam a linguagem como uma capacidade inata, específica e distinta das demais faculdades mentais, defendendo-a enquanto habilidade autônoma (noção de modularidade cerebral). Com o aprofundamento nos estudos cognitivos, a modularidade foi sendo criticada e questionada frente a novas teorias como a do conexionismo. As propostas cognitivistas emergentes aproximam o conhecimento linguístico dos outros tipos de conhecimentos e questiona a independência das faculdades mentais, sugerindo uma interdependência entre elas.
Segundo a linguística cognitiva², os conhecimentos linguísticos (semânticos) e extralinguísticos (enciclopédicos) não devem ser distinguidos, pois ambos se conectam e se relacionam em uma mesma rede, ou seja, são processados conforme a cognição do indivíduo como um todo. A visão integradora (convergente ao modelo conexionista) estipula a existência de uma relação sistemática entre a linguagem, o pensamento e a experiência, de modo que a busca anterior dos gerativistas por aspectos linguísticos universais, sem levar em conta a esfera social e interativa, volta-se agora para a interação social e para o uso concreto da língua nas mais variadas situações comunicacionais. A hipótese gerativa da “autonomia da sintaxe” é enfraquecida perante uma valorização de aspectos semânticos e funcionais relacionados ao uso da língua “os significados não são elementos mentais únicos e estáveis, mas resultam de processos complexos de interação entre diferentes domínios do conhecimento.” ( MARTELOTTA, 2008, p.179). Nessa perspectiva, o mundo é categorizado pelos indivíduos, interpretado e representado de acordo com o “trabalho imaginativo da mente humana” (MARTELOTTA, 2008, p.180), dessa forma, a capacidade de interpretar e compreender intenções alheias está associada ao “princípio da escassez do significante”, princípio o qual vê as formas linguísticas como indícios para “complexas tarefas cognitivas associadas à linguagem”, ou seja, “o sentido não constitui uma propriedade intrínseca da linguagem, mas o resultado de uma atividade conjunta – que pressupõe cooperação – associada a operações de projeção e transferência de domínios.” (MARTELOTTA, 2008, p.180). Observa-se, aqui, que a linguística cognitiva preocupa-se com o conhecimento por meio da linguagem e, preocupa-se, ainda, em buscar a forma como a linguagem contribui para o conhecimento do mundo a partir da interação do indivíduo com o meio sociocultural em que está inserido.
Confluente aos aspectos citados anteriormente, tem-se também nos estudos linguísticos cognitivistas o chamado “pensamento corporificado”, conceito responsável por reforçar o caráter integrador da teoria, visto que indica a ligação entre mente e corpo, e elucida a importância deste conjunto na percepção do mundo: o pensamento é primordialmente estruturado e organizado segundo o contato do corpo com aquilo que o cerca, percebemos o mundo por meio dos sentidos e de nossa disposição no espaço, sendo as experiências corpóreas mais básicas aquelas que fornecem a base de nossos sistemas conceptuais (MARTELOTTA, 2008, p.182). Como exemplo do “pensamento corporificado”, há o uso de expressões espaciais para se referir às ideias temporais, como na letra da música do Raul Seixas “eu nasci há dez mil anos atrás”. Nota-se que a expressão “atrás”, referente à esfera espacial, é transferida para uma esfera temporal. Em outras palavras, compreende-se o tempo (noção mais abstrata), a partir do espaço (noção mais básica), estabelecendo entre eles uma relação metafórica conferida também à outros domínios do conhecimento; tais movimentos compõe o que foi tido convencionalmente por “projeção entre domínios”. A conexão entre domínios – “diferentes conjuntos de conhecimentos pré-linguísticos que são estruturados por nossas experiências coletivas ou individuais”(MARTELOTTA, 2008, p.182), – por sua vez, só é possível graças à “mesclagem”, ou seja, ao processo cognitivo capaz de relacionar e associar conhecimentos diversos.
De acordo com as informações apresentadas, sabe-se que as associações de conhecimentos distintos são legitimadas pelos processos cognitivos, com isso, aponta-se para uma última premissa a ser tratada sobre a abordagem cognitivista na linguística: a construção de sentidos, (não que o assunto tenha se esgotado, pelo contrário, as proposições relacionadas à linguística cognitivista são tão complexas e extensas que nos obrigam a apresenta-las, aqui, de forma mais geral). Para os cognitivistas os sentidos são encarados como “entidades conceptuais” (MARTELOTTA, 2008, p.183) e o sujeito é adicionado ao processo da significação. Os elementos linguísticos apresentam-se durante a comunicação a fim de garantir a perspectiva referida pelo falante, para tanto são consideradas questões como “ponto de vista”, “alinhamento de figura e fundo”, “conhecimento de base em relação ao qual o conceito é compreendido”, “enquadre” e, principalmente, são mobilizados no processamento da linguagem os domínios conceptuais e locais (“espaços mentais”).
As teorias cognitivas referentes aos estudos da linguagem são bastante importantes, pois como podemos perceber, a linguagem passou a ser analisada segundo sistemas cognitivos interconectados, relacionados não só à própria capacidade linguística, mas também ao raciocínio, à percepção de mundo, à memória... Enfim, à cognição humana como um todo. Além disso, os estudos acerca da linguagem evoluíram na medida em que se uniu à análise de elementos linguísticos, dados extralinguísticos inerentes à condição social do Homem. Por fim, observa-se que a visão interacionista e integradora da linguística cognitivista contribuiu tanto para os conhecimentos na própria área, quanto para o desenvolvimento das demais ciências da cognição (relacionadas à psicologia, neurociência e etc).
Notas:
¹ Convém apontar a diferença entre cognitivistas e linguística cognitiva: o primeiro, de modo mais geral, diz respeito aos adeptos ao cognitivismo, ou seja, àqueles cujos estudos, em resposta ao behaviorismo, contemplavam a cognição – os processos da mente relacionados com o conhecimento; já a linguística cognitiva, refere-se à uma proposta de estudo da linguagem, que embora seja de cunho cognitivista, afasta-se da perspectiva modular da cognição, considerada, anteriormente, pelos gerativistas. A linguística cognitiva, portanto, “prevê a atuação de princípios cognitivos gerais compartilhados pela linguagem e outras capacidades cognitivas, bem como a interação entre os módulos da linguagem, mais especificamente, entre estrutura linguística e conteúdo conceptual” (FERRARI, 2011, p.14).
² Linguística Cognitiva: “o termo foi inicialmente adotado por um grupo particular de estudiosos, entre os quais se destacam George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy, Charles Fillmore e Gilles Fauconnier, cuja vasta experiência de pesquisa em Semântica Gerativa motivou crescente insatisfação com o papel da Semântica/Pragmática no modelo. Esses autores concordavam fundamentalmente com o matiz cognitivista da teoria gerativa, condensado na fórmula “a linguagem é o espelho da mente” (Chomsky, 1975), mas passaram a buscar um viés teórico capaz de dar conta das relações entre sintaxe e semântica, investigando especialmente as relações entre forma e significado na teoria linguística”. (FERRARI, 2011, p.13)
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Referências Bibliográficas:
VARELA, F. CONHECER, As Ciências cognitivas – tendências e perspectivas. Trad. Maria Teresa Guerreiro. Instituto Piaget, 2000.
CHOMSKY, Noam. O Conhecimento da Língua: Sua natureza, Origem e Uso. Trad. Anabela Gonçalves e Ana Tereza Alves. Lisboa: Caminho, 1994
MARTELOTTA, M. E. Linguística Cognitiva – p. 177-192, in: Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008.
FERRARI, L. Introdução à Linguística Cognitiva. São Paulo: Contexto, 2011.