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Gagueira x DPAC: patologias distintas e suas relações

Este conteúdo foi produzido como parte da avaliação da Unidade Curricular Linguagem e Cognição do curso de Graduação em Letras da Unifesp, ministrado em 2017.2 pela Profa. Indaiá Bassani.

I



Há quem diga que os distúrbios de comunicação se relacionam diretamente com os distúrbios de aprendizagem. Esta afirmação é de certa forma correta, mas o que muitos esquecem é que a relação entre comunicação e aprendizado é mútua, ou seja, os problemas de aprendizagem também podem refletir no desenvolvimento da linguagem e da comunicação das crianças. Note que aqui não está sendo dito que estes distúrbios necessariamente se relacionam, apenas que existe essa possibilidade.


Os distúrbios de comunicação, fazem parte da língua oral e dizem respeito a falhas no desenvolvimento da fala, que podem ser de ordem neurológica, comportamental, física ou fisiológica e podem existir em diversos graus. A variedade destes distúrbios é grande e engloba uma série de fatores que, muitas vezes, são ignorados pela sociedade, como simples trocas silábicas, por exemplo, ou gagueira, falta de coesão e coerência na fala, vocabulário escasso, etc. Os distúrbios de aprendizagem, por sua vez, encaixam-se na língua escrita e caracterizam-se por dificuldades na leitura e na escrita, que acarretam em uma série de problemas no desenvolvimento das crianças. Assim como o primeiro, também existe uma grande variedade de distúrbios de aprendizado, como dislexia, déficit de atenção, hiperatividade, etc., e as causas são inúmeras.


Aqui, discorreremos acerca de um distúrbio de comunicação e um de aprendizagem – a gagueira e o déficit de processamento auditivo – e de que maneira eles se correlacionam. A gagueira (distúrbio de comunicação) pode ser considerada um distúrbio social ou um distúrbio físico: segundo a fonoaudióloga Silvia Friedman, ela é um distúrbio social, causado pela convivência familiar e/ou escolar. Diferentemente dela, Claudia Regina Furquim de Andrade a trata como um problema físico ou fisiológico, podendo ser genético e/ou hereditário. O DPAC (Distúrbio do Déficit de Processamento Auditivo) ocorre devido a uma dificuldade em processar os sinais auditivos de forma adequada. Na maioria das vezes não há perda de audição, porém a forma como os sons são processados, discriminados ou interpretados pelo córtex geram confusão e provocam um distúrbio de compreensão, que também impacta o desenvolvimento da aprendizagem.

II

Existem diversas linhas de pensamento acerca da gagueira, mas aqui, falaremos de apenas duas: a de Silvia Friedman e a de Claudia Regina Furquim de Andrade, ambas mencionadas na introdução. Partindo-se, então, da ideia de Silvia Friedman, a gagueira surge no processo de aquisição da linguagem, entre dois e quatro anos de idade, e é considerada fisiológica, pois demonstra uma incoordenação da articulação da fala e do pensamento: a criança pensa em imagens e ainda não domina o vocabulário adequadamente. Assim, tenta manter a fala encadeada, que percebe no discurso social, apresentando prolongamentos de vogais ou repetições de sílabas. Em algumas crianças essa fase de gagueira fisiológica passa despercebida, porém, se desperta a atenção dos familiares pode gerar certa ansiedade por parte desses e, frequentemente, gerar cobranças e pressões que despertam a atenção da criança à sua maneira de falar e não mais ao conteúdo. Isso pode ser um grave risco para desencadear uma gagueira patológica e impactar todo o seu desenvolvimento de fala.

A segunda linha teórica sobre o assunto é a de Claudia Regina Furquim de Andrade. Esta, vê a gagueira como um problema físico, de origem neuromotora, ou seja, no processo de aquisição da linguagem, o cérebro das crianças está preparado para processar e formular uma série de informações e frases, contudo, algumas crianças possuem uma espécie de falha no funcionamento do sistema nervoso e acabam gaguejando, o que pode ser confirmado com os avançados estudos de neuro-imagens, os quais mostram que as áreas de um gago afetadas são as áreas motoras, não as áreas emocionais, ou seja, a área de Broca que encontra-se próxima à área que controla a boca e os lábios no córtex motor, na região temporal do hemisfério esquerdo do cérebro. Segundo ela, menos de 10% dos casos de gagueira são de origem psicológica, e são, em sua maioria, de origem genética. Além disso, ela também afirma que, em momentos de nervoso, todos podem gaguejar, por questões psicológicas, mas isso não seria considerado uma patologia.


Se tomarmos por base crianças no período crítico, ou seja, em fase de aquisição de linguagem, notamos que todas elas gaguejam, umas mais, outras menos, mas a gagueira está presente em todas elas, o que vai contra as hipóteses de Claudia Regina Furquim de Andrade. Nesta idade, como afirma Friedman, a gagueira é natural e é de origem neuromotora (pensamento e fala não se articulam), mas será corrigida naturalmente com o amadurecimento da linguagem, ou seja, após o período crítico ou processo de aquisição de linguagem. Não existem crianças fluentes nestes períodos, o que torna a teoria de Claudia equivocada em alguns pontos. Friedman ainda diz que, se notória, a gagueira pode vir a ser uma patologia sem cura, que seria desenvolvida não pela falta de articulação entre pensamento e fala, mas por problemas psicológicos, como o medo de falar em público, ou conversas simples do dia a dia – nestes casos, a gagueira acontece pela preocupação do indivíduo em seu modo de falar e não no conteúdo de sua fala.


Apesar de discordarem acerca da origem da gagueira, ambas as autoras afirmam que ela não tem cura. Silvia e Claudia são a favor de tratamentos fonoaudiólogos para melhorar a fluência dos gagos, o que reduziria os níveis de gagueira em cerca de 75%. A grande questão, porém, estaria nas abordagens utilizadas por ambas para melhorar a fluência destas pessoas, já que uma considera o problema em âmbito social e a outra em âmbito neuromotor. É preciso, então, ter em mente que a gagueira faz parte do processo de aquisição de linguagem e que, se ela persistir, ela pode se tornar um empecilho social e pode ser agravada. As crianças e adultos gagos sofrem preconceito familiar, escolar e profissional, e isso agrava o problema. É importante ressaltar que os gagos não possuem fluência na fala, mas o seu intelecto é igual ao de qualquer outra pessoa e qualquer dificuldade que esse indivíduo possa ter em sua vida, não diz respeito a problemas neurológicos ou a patologias, mas à dificuldade de comunicação e aceitação social.

III

Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, o DPAC (Distúrbio do Déficit de Processamento Auditivo) não diz respeito a problemas auditivos, mas sim à falta de processamento de informações no cérebro. Nossas habilidades auditivas dizem respeito a detectar, localizar, discriminar, reconhecer e compreender os sons. Tudo isso acontece nas estruturas do sistema nervoso, por meio do “Processamento Auditivo Central” (PAC). Ao ouvirmos um som, nosso cérebro tende a processar e interpretar a informação ouvida, e, aqueles com DPAC possuem falhas no processamento dessa informação, causando a incompreensão daquilo que lhe foi falado, ou seja, estas pessoas escutam, mas possuem dificuldades em interpretar os enunciados dirigidos a elas, o que pode vir a causar distúrbios de aprendizagem, de comunicação e, até mesmo, sociais.

Dificuldades na discriminação de figura-fundo, memória limitada, habilidades reduzidas, dificuldades na associação de grafema-fonema ou até mesmo atraso no desenvolvimento da linguagem são características comuns a quem tem DPAC. Muitas vezes, pessoas, especialmente crianças, com DPAC encontram grande dificuldade no aprendizado e desenvolvem uma autoimagem negativa de escritor/leitor, gerando grande desinteresse escolar e acadêmico. São tidos como más alunas, preguiçosas, desinteressadas, atrasadas ou distraídas. As abordagens fonoaudiológicas para trabalhar os DPACs podem ser dirigidas em treinamentos auditivos programados com uso de fones de ouvido em cabines acústicas ou em treinamentos auditivos terapêuticos fora da cabine. São estimuladas funções auditivas como memória e sequenciação auditivas, reconhecimento de padrões de tons e frequências, entre outras habilidades.

IV

Considerando o sistema de comunicação humana, os pensamentos são elaborados e explanados através da linguagem e da fala. Ao falar ocorre um feedback acústico-articulatório, que é um sistema de autoavaliação sobre o que o próprio sujeito está falando. Em outras palavras, ao falar, o sujeito escuta a sua própria voz e, inconscientemente, analisa seu discurso realizando os ajustes necessários à sua fala. Assim, entre as várias causas passíveis de desencadeamento da gagueira patológica e, entre as várias dificuldades possíveis em um diagnóstico de DPAC, podemos apontar uma relação entre as duas patologias em questão. Em um sujeito com um atraso temporal de percepção auditiva de sua própria voz, a necessidade em prolongar as sílabas enunciadas ou repeti-las começa a fazer sentido. Ocorreria uma falta de coordenação entre a fala e a sua auto-escuta. Na tentativa de alcançar os milésimos de segundo de atraso auditivo, pode haver também uma incoordenação pneumofonoarticulatória (habilidade de respirar, produzir a voz e articular os sons), gerando uma gagueira fisiológica.

Em linhas gerais, duas patologias de linguagem foram descritas e analisadas, para que pudéssemos estabelecer algumas relações. Elas são de origens, fisiologias e efeitos distintos e podem, de alguma maneira, em alguns sujeitos, se inter-relacionarem, gerando um distúrbio comunicativo. É importante ressaltar que essas relações estabelecidas podem ou não acontecer e que estes distúrbios, apesar de interferirem na comunicação das pessoas, são completamente diferentes e possuem tratamentos diferentes.

Referências bibliográficas:

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ANDRADE, C. R. F. Fluência. In: ABFW - teste de linguagem infantil: nas áreas de fonologia, vocabulário, fluência e pragmática. 2. ed. Barueri: Pró-Fono, 2004. cap. 3, p. 71-94.

BEAR; CONNORS; PARADISO. Neurociências desvendando o sistema nervoso. 2 ed. Porto Alegre: Editora Artmed, 2002. p. 642.

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